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UMA CASA DE INICIAÇÃO E SUA CONTINUIDADE

“A cobertura que recebemos não menos responsável por nossa parte a fazer”. Estas são palavras de um filho de santo em nosso grupo de discussões internas e apontam que o caminho não é uma via única: receber do sobrenatural e dos pais e mães de santo. Todos temos responsabilidades em nossos atos e devemos responder por eles, bem como sermos capazes de ir em busca e caminhar. Não há aprendizado ou iniciação sem esforço e sem assumir nossas responsabilidades durante o percurso. O primeiro deles é encontrar a casa de santo e ser aceitx como filhx de santo, pois você está atrás de uma casa, mas ela, por meio da sacerdotisa ou sacerdote, precisa aceitá-lx, como dizia meu Babá/Mestre: “não basta querer”. São os pais ou mães de santo quem decidem sua aceitação e permanência.

Para permanecer em uma casa de santo/escola de iniciação é necessário seguir suas normas e ter responsabilidade perante o pai ou mãe de santo e sua casa de santo. Isto demanda esforço, bem como anos de dedicação, que pode levar ao amadurecimento na dependência do maior ou menor esforço de cada um, sem com isso determinar per se que a iniciação necessariamente conduzirá ao sacerdócio. Não se pode ser um filhx de santo esporádico como um veranista que aparece quando deseja ou precisa. Como disse anteriormente, esta casa é de iniciação, e não de milagres ou um centro de conhecimento por meio de osmose.

Você não se modifica por milagre. Isto requer esforço contínuo e dedicação.

Uma casa de iniciação não é uma conferidora de títulos ou outorgas, e sim um local para você se conectar de fato consigo e na mesma medida com o sobrenatural e seus valores. Para isto ela tem métodos dos quais os ritos mediúnicos/transe fazem parte, mas não são o constituinte da realidade iniciática em sua totalidade. Incorporar é uma etapa, e não o fim último.

É necessário sermos despertxs e ir adquirindo atenção com o mundo externo (terreiro e mundo natural), bem como com o mundo interno (pensamentos e sentimentos). Incluímos o sobrenatural nos dois mundos. A interação constante entre estes dois mundos, sempre sob a orientação de um pai ou mãe de santo, é o que proporcionará de modo lento sua formação iniciática.

O aprendizado requer o hálito de quem transmite, do pai ou da mãe de santo. Sendo assim, a iniciação é a dedicação de toda uma vida. Não se trata de adquirir títulos parciais e vitalícios sem reciclagem constante, como no processo de educação formal. Título de ensino fundamental, médio etc. Embora até a educação formal hoje fale em educação continuada ou constante capacitação. O que dizer então da iniciação, que é muito mais profunda, complexa e ampla? A iniciação é um aprimoramento constante.

O papel de iniciador ou iniciadora é ser capaz de "levantar" pessoas e conduzi-las pelo caminho da espiritualidade. Dedicar sua vida a isto e saber as inúmeras e diversas metodologias para poder aplicá-las, sem preconceituar ou escalonar melhores e piores segundo nosso juízo de valor. Como iniciadores e iniciadoras sabemos que são diversos os métodos, bem como talvez não consigamos dominar todos eles, mas isto não pode ser o fio da navalha para invalidá-los. Outro fator relevante é que o iniciador e a iniciadora detenham a capacidade de autoavaliação de seus métodos e valores produzindo uma constante revitalização de sua escola. Caso contrário, estaria na contramão da iniciação, que é um eterno caminhar e desvendar-se, um autoaprendizado. Por princípio seria incoerente propagarmos um caminhar com o pressuposto de que nada muda. Assim, se tornarmos o método fixo e imutável por séculos, por exemplo, corremos o risco de enrijecer a tradição e levá-la ao desgaste.

Não falo das mudanças dos dogmas. Muitxs podem me perguntar: “dogmas?” Sim, dogmas. Dogma, dentro de uma perspectiva teológica, consiste naquilo que é estruturante ou o núcleo duro da religião. Nas religiões afro-brasileiras podemos citar: iniciação, ética dx iniciadx com sua tradição, transe (incorporação ou transe), crença na vida além do corpo, ancestralidade, divindades, etnomedicina, transmissão oral por meio da vivência, jogos oraculares, entre outros.

Retomando a iniciação e suas metodologias, darei exemplos de como isto se modifica ao longo da trajetória das escolas nos diferentes núcleos. Na umbanda esotérica, por exemplo, era vedado às mulheres o 7º grau. Isto nos idos de 1950, e permaneceu por várias décadas, época em que o sacerdote Matta e Silva estava no comando da mesma e parte do período seguinte após a transmissão. Tratava-se de período em que a sociedade era ainda mais patriarcal e androcêntrica do que nos dias atuais. Porém tal cenário foi retificado pelo sacerdote F. Rivas Neto, nos idos da segunda década do século XXI, mais de 20 anos após assumir a sucessão da umbanda esotérica – um dos motivos que o levou a retificar a umbanda esotérica e dar o start a sua nova fase como umbanda iniciática. Ele fez mulheres no 7° grau. Em meu caso, sou uma mulher consagrada no 7° Grau, Segundo Ciclo. Hoje a umbanda esotérica/ iniciática tem uma mulher no comando. Lugar que ocupo dentro desta escola como sucessora.

Nos terreiros de candomblé, o processo era ao contrário. A feitura era vedada para os homens. Eles não eram feitos e hoje são. Mudanças opostas à umbanda esotérica, na qual eram vedados às mulheres determinados cargos sacerdotais e hierárquicos.

Outro fator de mudança foi o uso da escrita como ponto de apoio na iniciação, mas não como fator central. Estes são parcos exemplos de que as escolas de iniciação vão se modificando de modo lento e se adaptando à realidade sem perder suas bases.

O que me leva a ratificar que "a constante da tradição é a contínua mudança" (F. Rivas Neto).

Mas a ética no processo de iniciação não se modifica. O respeito ao seu pai de santo ou mãe de santo, o respeito a sua casa/escola de iniciação e o respeito a sua tradição tem de estar em nossas vidas em cada momento dela.

Uma iniciada ou um iniciado sabe honrar não apenas os aprendizados e palavras que ouviu. Ele e ela têm de vivê-los, e os vivem. Repito: vivem para sempre e acatam indiscutivelmente a tradição de sua escola, pois isto faz deles iniciado e iniciada desta ou daquela escola. Sua coerência com os princípios éticos de sua formação – seja perante sua mãe ou pai de santo, sua tradição (fundamentos e valores), sua comunidade e perante o mundo sobrenatural, com o qual com certeza fez seu pacto de lealdade e o compromisso com sua tradição, e com seu pai ou mãe de santo – deverá ser permanente.

Pai Rivas, meu iniciador, comprometido que era com a iniciação, o fez em três núcleos duros e eu tive a honra e oportunidade de ser iniciada por Ele em todos. Seguindo sua máxima de respeito à diversidade, que não era apenas falada, mas sim vivida e aplicada.

Suas obras são ímpares, mas não retratam um milésimo de sua ética, conhecimento e competência sacerdotal. O hálito que lançou sobre mim faz todo sentido àquela frase "a letra mata e o espírito vivifica". Seu sopro me fez viva.

Meus respeitos eternos a Ele por ter me permitido viver de modo constante as inúmeras experiências iniciáticas nos três núcleos duros e em suas diferentes escolas, bem como por ter caminhado a seu lado nos últimos 40 anos. Como disse em texto anterior, eu o segui em todos os projetos que realizou. Digo isto não por ser a sucessora, pois se ele e o sobrenatural tivessem achado que outra pessoa fosse mais adequada para dar continuidade à tradição, eu teria acatado como sempre, pois filhx jamais questiona o pai ou mãe de santo e sua tradição. Está é uma premissa da escola onde fui iniciada.

Como um homem visionário e muito experiente, deixou registrado em um código de ética, escrito em setembro de 1989, estes princípios defendidos por ele, cujos excertos repasso abaixo, em manuscrito, em sua letra forte e robusta (na II Festa “A Corte dos Òrìṣà”, realizada dia 18, o Código de Ética estava disponibilizado integralmente para todos os presentes que o quisessem ler, como havíamos anunciado previamente). Os anos fizeram-no ampliar este código, mas a semente dele é antiga: nasce há quase três décadas, momento este que marcava a recente transmissão da raiz de Guiné, da tradição da umbanda esotérica para suas “mãos”, bem como de mudanças em sua vida pessoal, o que culminou com a primeira de inúmeras traições que sofrera, infelizmente. Mas, como ele sempre dizia e repetiu em sua prédicas, vídeos no YouTube e textos em seu blog – que disponibilizaremos gradualmente: “Se até Jesus foi pregado na cruz e traído por Judas, o que o pobre Rivas Neto poderia esperar?”. E eu complemento com mais uma de suas frases: “Meninos, eu vi”. O que tudo indica deva ser o destino de quem assume a tradição. Mais uma vez infelizmente...

É a este guerreiro e vencedor que prestamos homenagem na II Festa “A Corte dos Òrìṣà” e aqui neste texto, após 3 meses de sua passagem concluídos ontem (25/8) e encerramento parcial de nossos interditos, presto minha homenagem ao melhor ser humano que conheci nesta vida.

Eu sou mãe Maria Elise Rivas para além do nome! Sou a iniciada que foi oficialmente incumbida por ele para dar continuidade a sua tradição.

Benção.

Awre o

Íyá Bê Ty Ogodô

Mestra Yamaracyê


 

Após as imagens do manuscrito do Código de Ética escrito por Pai Rivas, segue um vídeo em que ele discorre sobre "Ética no relacionamento Discípulo e Mestre".




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