Daremos ênfase às questões referentes aos núcleos duros dentro das religiões afro-brasileiras, sendo eles: as umbandas, as encantarias e os candomblés. Este é um tema que levará muito tempo em debate, não pela fragilidade do conceito, e sim pela dificuldade de os seres humanos entenderem que a diversidade e a heterogeneidade são naturais e positivas para as relações humanas.
Nós, adeptos e crentes das religiões afro-brasileiras, de tradição oral, devemos pensar e sentir a partir de seu modo próprio de ver e entender as relações com o sobrenatural e entre as diferentes linguagens religiosas afro-brasileiras. Muitas doutrinas apregoadas nos terreiros dão ênfase para se discutir e preconizar única e exclusivamente o que está em livros, o que respeitamos, no entanto ressaltamos que nossa tradição tem sua base na oralidade, na transmissão por meio da iniciação que se dá pela vivência e experiência religiosa sob as mãos de um pai ou mãe de santo, logo não se encontra alicerçada em livros. Poucos são aqueles que têm esta postura, no entanto ela tende a ser generalizada como a metodologia ideal.
Isto é reflexo de uma forte influência das tradições escritas, mas especialmente da cristã, que acabou monopolizando e imprimindo no Ocidente o modelo da transmissão por meio de um livro sagrado. Não temos nada contra quem o faça, mas gostaríamos de levantar a questão de que este método não pode desvalorizar ou desacreditar quem não o faça. E, no caso das religiões afro-brasileiras, trata-se da maior parte das casas de santo ou terreiros.
Outro fator é a tendência de hipervalorização da escrita em detrimento da oralidade, em discutir-se apenas o que está escrito, deixando à margem milhares de “células vivas” que pulsam nos diferentes terreiros espalhados por este Brasil afora.
Os terreiros podem e devem ser observados de várias formas de modo coerente com aquilo que fazem e realizam independentemente de padrões e regras estabelecidos. Isto fica para cada tradição, para seu grupo, no processo de iniciação, e não cabe a pessoas externas determinarem o que é ou não coerente.
A diversidade das religiões afro-brasileiras é o que faz delas uma unidade aberta em constante construção, tal e qual o ser humano, como preconizava nosso Pai Rivas e nós continuamos a defender. A polarização na tradição escrita como meio ideal a ser atingido se torna deletéria para o equilíbrio, a harmonia e a homeostasia dos núcleos duros. Ainda enfatiza-se que, dentro dos núcleos duros, as umbandas, e mesmo assim apenas algumas delas, têm maior preocupação com a transmissão com base em livros. Isto é reflexo da aproximação com os valores cristãos que acabam por constituir sua lógica ritual e compreensão do sobrenatural. Crentes da umbanda muitas vezes não rompem com o cristianismo, ao contrário, carregam-no em seus valores para dentro de uma religião mediúnica. Podem ser cristãos em um mundo onde há ancestrais incorporando. Não abandonam Deus, Jesus e outros conceitos. Algo absolutamente aceitável, mas isto não significa ser este o método principal que deva ser homogeneizador das religiões afro-brasileiras. Não estou descartando outros núcleos, com suas escolas, fortemente influenciadas pelo cristianismo, como Jurema, mas que não se alicerçam na tradição escrita.
Mesmo tendo estas influências da tradição escrita oriunda do cristianismo, no caso do Brasil, em um núcleo, as religiões afro-brasileiras são majoritariamente de tradição oral. Neste momento chamamos a atenção à alteridade, a atenção ao outro, na forma de o outro ver e entender suas práticas. A tradição oral preconiza a constante reflexão de si e do seu meio, logo a alteridade tem de ser força motriz e, ademais, sua fluidez e heterogeneidade não são indicativos de dissolução em seus princípios fundamentais, aqueles que sustêm seus diferentes núcleos desde sempre.
Temos características que nos marcam como religiões afro-brasileiras e uma delas é o transe, seja de incorporação (ancestrais) ou manifestação (orixá), crença nas forças da natureza como sagrado, a ênfase no processo de iniciação, etnomedicina, entre tantas outras.
Encerro dizendo que os núcleos duros têm suas especificidades e todas de igual valor, sendo que, nas encantarias e candomblés, vemos a maior ênfase da preservação da tradição oral, ao passo que nas umbandas há mescla mais intensa entre tradição escrita e oral. Ressalto aqui que não somos mais de oralidade primária, isto é, sem contato com a escrita, somos de oralidade secundária, logo seres em contato com um mundo escrito, mas que preservamos métodos da oralidade em nossas práticas de terreiro.
Mãe Maria Elise Rivas
Íyá Be Ty Ogodô
6 de agosto de 2018.
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